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Impostos e cidadania

19, outubro, 2010

A política tributária brasileira tem sido historicamente perversa com os cidadãos de baixa renda que, em última análise, são expropriados às escuras, no maior programa de transferência de recursos para financiar a luxúria dos juros altos pagos aos rentistas

Por Carlos André  e  Ítalo Aragão

Na sociedade republicana e democrática, é o povo que determina, por meio da Carta Constitucional, quais os fundamentos e objetivos do Estado. Esta afirmativa, num país como o Brasil, de tradição política autoritária, pode soar abstrata, como se tivesse sido extraída de um curso de teoria do Direito. Mas, desde a promulgação da atual Constituição, em 1988, pouco a pouco percebemos que o espírito republicano e democrático se vem inserindo de forma concreta nas relações sociais, políticas e econômicas.

Um dos aspectos mais sensíveis da relação entre o povo e o Estado dá-se no campo tributário. É o povo que financia o Estado ao pagar os tributos que suprem os cofres da União, estados, municípios e Distrito Federal. Neste sentido, pagar tributos é um ato de cidadania que transforma cada um, do povo, em patrocinador das políticas públicas do Estado.

No Brasil, a função primordial do Estado é cumprir as determinações do artigo 3o da Constituição. O Estado tem como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento com erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos. Somente a busca destes objetivos dá ao Estado a legitimidade necessária para arrecadar tributos do povo. Contudo, grande parte dos brasileiros, especialmente a classe trabalhadora de menor renda, não tem consciência de quem efetivamente suporta a carga tributária e, menos ainda, da destinação desses recursos públicos.

O peso dos tributos é distribuído de forma desigual pela sociedade. Em recente estudo, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – Ipea demonstrou que a carga tributária suportada pelo décimo mais pobre da população chega a 32,8% da sua renda. No outro extremo, o décimo mais rico tem um ônus equivalente a 22,7%. A carga tributária da população mais pobre é proporcionalmente mais alta que a da população mais rica, em relação à renda.

Em outras palavras, o segmento mais pobre da população é o que sofre o maior peso do financiamento do Estado. Desta forma, a tributação no Brasil tem como efeito o aumento da concentração de renda, pois tira mais de quem tem menos. A este fenômeno dá-se o nome de regressividade.

A tributação regressiva resulta da opção de sucessivos governos de aumentar a arrecadação pela via mais prática, que é o incremento da tributação indireta sobre o consumo.

Tributação invisível

Dois são os principais efeitos da tributação sobre o consumo. Primeiro, eleva fortemente os custos de produção e comercialização de bens e serviços, que são repassados nos preços pagos pela população. Segundo, a população que arca com a carga tributária embutida no preço de mercadorias e serviços não consegue percebê-la claramente, uma vez que a tributação indireta é invisível.

Pode-se ter uma medida clara no estudo do Ipea, citado acima, que demonstra que, da carga tributária de 32,8%, suportada pelo décimo mais pobre, 29,1% é indireta. A desigualdade na distribuição da carga tributária carece de legitimidade constitucional e deveria ser o ponto central de qualquer debate sério acerca da reforma tributária. Mas, lamentavelmente, o foco do debate tem sido desvirtuado. Como a bandeira política da reforma tributária foi assumida pela elite econômica, centrou-se a discussão na simples redução da carga, com vistas à redução do Estado e do Alcance das políticas públicas.

No discurso elitista, a desigualdade é mascarada com manobras como o famoso “impostômetro” que, presumidamente, diz quantos dias, em média, o brasileiro trabalha por ano para pagar tributos. Ao basear sua informação na média, o “impostômetro” passa a ideia de que a carga tributária seria suportada igualmente pelas pessoas, o que não é verdade, como bem demonstra o estudo do Ipea.

Outro mito criado para contornar o debate sobre a regressividade na distribuição da carga tributária é que o governo, ao aplicar os recursos arrecadados, atingiria o objetivo de promover o crescimento econômico com redução das desigualdades.

Todavia, a mesma desigualdade ocorre com a aplicação dos recursos estatais. O governo federal, por exemplo, destina muito mais recursos para o pagamento de juros da dívida pública do que para o financiamento do Programa Bolsa Família, que mantém 11,6 milhões de famílias livres da condição de miséria. O mesmo ocorre nas áreas de saúde e educação, as quais vêm recebendo cada uma, sistematicamente, menos recursos que os destinados às aplicações financeiras.

De fato, o Ipea aponta que, em relação ao Produto Interno Bruto, a carga tributária líquida, ou seja, a carga tributária menos o pagamento de juros variou de 10,7%, em 2000, para 12,1%, em 2005. Em 2003, chegou a cair para 9%. Estes números mostram que todo o aumento restante da carga tributária serviu tão somente para financiar o pagamento de juros da dívida pública.

A manutenção deste modelo transfere renda do andar de baixo para a cobertura, em desavergonhada afronta aos ditames sociais preconizados pela Constituição Cidadã.

Sem submissão

A submissão da classe trabalhadora mais pobre às desigualdades e a marginalização de parcelas significativas da população mostram que ainda não há uma consciência plena da relação que deveria ser estabelecida entre o povo e o Estado.

A relação do povo com o Estado republicano e democrático não pode ser de vassalagem ou de submissão, mas de cidadania, com dignidade, pautada por direitos e obrigações. A constatação de que a carga tributária brasileira é regressiva faz nascer a demanda pela sua urgente redistribuição. Já a verificação de que os gastos governamentais privilegiam a elite econômica faz surgir o legítimo anseio pelo seu redirecionamento para promover a redução das desigualdades.

Os trabalhadores já deveriam estar nas ruas brandindo a Constituição e reivindicando uma reforma tributária. Uma reforma tributária que redirecione parte da carga indireta sobre o consumo para o patrimônio e a renda dos mais abastados. Uma reforma tributária que respeite a capacidade contributiva e cumpra o papel constitucional de distribuir renda, em vez de concentrar.

A classe trabalhadora deve se organizar para debater como os recursos fornecidos ao Estado estão sendo gastos, com vistas a exigir as mudanças necessárias capazes de potencializar a erradicação da pobreza, reduzir a desigualdade e promover o desenvolvimento com dignidade para todos.

Carlos André
é ex-presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal

Ítalo Aragão
é auditor fiscal da Receita Federal, especialista em Tributação.

1 Fonte: POF/IBGE (microdados). Elaboração: Ipea, a partir de Gaiger, 2008.
2 Fonte: IBGE. Elaboração: Ipea.

Este artigo reflete as opiniões do(s) autor(es), e não necessariamente da Delegacia Sindical do Ceará. Esta Delegacia Sindical não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizada pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.