O autoritarismo antigreve de Dilma
2, agosto, 2012Por Maurício Caleiro
O modo como o governo Dilma Rousseff vem lidando com as greves do funcionalismo público deveria suscitar preocupação não apenas entre os diretamente envolvidos na questão, mas em todos que prezam pelo avanço democrático e pelo respeito aos direitos trabalhistas. Como veremos no decorrer deste texto, o Decreto 7.777, publicado no último dia 25 e que prevê a substituição dos grevistas de órgãos federais por servidores estaduais e municipais, é o ponto mais baixo de um processo em que a conduta do governo tem se caracterizado pela falta de diálogo, pelo recurso ao ilusionismo financeiro, pela tentativa de jogar a opinião pública contra os grevistas - e, agora, com essa medida draconiana, por um autoritarismo incompatível, na forma e no conteúdo, com o país democrático, lar de políticas sociais avançadas e player internacional que o próprio governo constantemente alardeia sermos. Já no início, uma guinada conservadora A prioridade irrestrita ao econômico que caracteriza a administração de Dilma se traduziu, em um primeiro momento (fevereiro de 2010), na readoção de um receituário à moda neoliberal, com um duríssimo choque anticíclico que teve como meta não apenas aumentar o então já alto superávit primário, mas zerar o déficit nominal [gastos menos despesas, incluindo pagamento de juros]. Em nome desse agrado aos bancos e ao mercado financeiro foi então anunciado um corte de R$50 bilhões nos gastos públicos, que afetou diretamente Saúde, Educação e demais áreas sociais (com exceção dos programas de renda mínima), estabeleceu um salário mínimo sem aumento real, fixado em mais que módicos R$545,00, e determinou a suspensão de novos concursos e de contratação de aprovados em concursos anteriores. Kill the messenger O jornalista e blogueiro Luis Nassif foi uma das raríssimas vozes da blogosfera a, no calor da hora, apontar a inadequação e a prognosticar danos futuros à economia brasileira por conta de tal “pacote econômico” - sem o qual, como ele demonstra em coluna da semana passada, o momento econômico atual tenderia a ser outro, bem melhor. Mas a equipe econômica chefiada por Mantega levaria meses para se dar conta do desacerto e voltar a apostar na expansão do crédito e do consumo e numa ralentada retomada de investimentos estatais como forma de melhorar o desempenho da economia – sempre sem exorcizar a obsessão com os altos superávits, o que acaba por levar, inexoravelmente, a resultados contraditórios, dos quais a atual situação do servidor público é, como veremos, exemplo cabal. Perfis públicos Antes, porém, examinemos a questão da falta de diálogo do governo com a sociedade, que é hoje traço distintivo do poder federal. Ela foi inicialmente interpretada como uma impressão advinda da mudança de estilo trazida pela sucessão presidencial, do expansivo e brincalhão Lula para a mais reservada e austera Dilma. Criou-se inclusive um anedotário a respeito, o qual, por sua vez, não esteve livre dos preconceitos que de ordinário imbuem as questões de gênero em um país profundamente machista. Por outro lado, a própria mídia, interessada em criar uma falso antagonismo entre a atual mandatária e o seu antecessor - em detrimento deste -, acabou por ressaltar, em inúmeras matérias, a “seriedade”, “determinação” e “objetividade” da presidenta como características positivas, em oposição ao que sempre viu como excessos, mau gosto e populismo inculto de Lula, a quem nunca engoliu. Ao final, como parece indicar o grau de aprovação pessoal de Dilma, o país não só se acostumou, mas acabou por afeiçoar-se ao seu estilo. Silêncios do palácio Ocorre, porém, como agora fica dolorosamente claro, que a questão nunca se restringiu a uma mera mudança de estilos pessoais na Presidência. É provável, na verdade, que as discussões sobre o tema tenham colaborado para desviar o foco do problema real: o fato de que foi a administração Dilma como um todo que abandonou a saudável prática de dialogar constantemente com a sociedade, vigente nos oito anos anteriores, e, sob uma liderança por demais concentradora e a primazia de uma área econômica que se crê onipotente e tem sempre a última palavra, isolou-se em tecnicismos e certezas palacianas. No governo Lula, o diálogo constante com a sociedade – através de lideranças, sindicatos, grupos de trabalho, ONGs -, além de distender as tensões e, em algum grau, facilitar a empatia entre um lado e outro, dava a ambos, em curtos intervalos de tempo, uma noção dos termos pretendidos pelos requerentes e pelos donos das canetas. Sem isso, a atual administração dá frequentemente mostras de estar sendo surpreendida pelas demandas trabalhistas (o que é evidentemente falso, já que ela acompanha os sindicatos por outros canais, unilaterais), reage mal, demora uma enormidade para agendar uma mera reunião conciliatória (mais de um mês, no caso dos professores federais) e as raras contrapropostas que faz trazem a evidência do mais primário improviso. Quem não se comunica... No primeiro dos textos deste blog dedicados à greve dos professores federais, afirmei que a paralisação teria sido facilmente evitada se o governo tivesse simplesmente mantido o diálogo aberto. Tal premissa tem sido corroborada também pela greve dos funcionários públicos federais como um todo, que envolve 25 categorias profissionais, e que só foi deflagrada quando ficou claro que não havia possibilidade de diálogo. A nota oficial difundida pela CUT em relação ao decreto 7.777 confirma os aspectos deletérios do isolamento governamental: “Para resolver conflitos, o caminho é o diálogo, a negociação e o acordo. Sem isso, a greve é a única saída”. Na ausência de tais canais de comunicação, o confronto entre grevistas e patrões, natural numa democracia, é deslocado do espaço público presencial de debate e negociação - que num governo democrático, trabalhista e alegadamente de centro-esquerda deveria ser a mesa de negociações - e virtualmente restrito, nas condições e frequência que o governo determinar, à arena pública – a qual, nas sociedades contemporâneas, é dominada pela mídia. Mídia e mercado E a mídia corporativa, como está sobejamente demonstrado na literatura a respeito, tem hoje seus interesses de tal forma consonantes aos do mercado que se tornou não apenas seu porta-voz, mas uma sua parte constituinte. Com ele divide, naturalmente, a adoção do receituário neoliberal como panaceia de todas as horas, evidência que o atual rumo dos países europeus em crise não apenas corrobora mas cujos efeitos, através do esgarçamento de seu tecido social, denuncia. Para compreender como o governo Dilma tem conseguido, em larga medida, instrumentalizar a mídia – de ordinário, refratária ao governo petista - a seu favor durante as greves deste ano é preciso ter claro a afinidade entre a orientação neoliberal das corporações midiáticas - aí incluída sua repulsa pelo funcionalismo público e por tudo que seja estatal, com exceção das verbas publicitárias – e a hesitação de um governo em profundo conflito entre, de um lado, o “modelo” de retomada do papel do Estado tal como inicialmente a aliança federal petista propusera e, de outro, as restrições impostas pelo economicismo hegemônico no interior da administração, o qual tende a açular ainda mais, no interior da administração, os temores relativos à crise econômica mundial. (A respeito da aliança mídia-governo em relação à greve dos professores, vale muito a pena ler este post de Weden.) Questões fundamentais Queremos ou não ser uma nação com nível educacional aprimorado? Vamos realmente investir num modelo de saúde pública inclusivo e de qualidade, que preserve o cidadão tanto das filas insuportáveis do atual sistema público quanto da farra dos planos de saúde? Está no horizonte do país realmente enfrentar a questão da segurança pública de modo a erradicar nossos pornográficos índices de violência, de abuso policial e de corrupção? A resposta a essas perguntas passa, necessariamente, pela valorização não apenas do professor, do médico e do policial, mas de todo o aparato de recursos humanos que possibilita a ação do Estado. E é nesse contexto, como um primeiro e necessário choque de realidade, que se insere a greve dos servidores. O movimento não é, de forma nenhuma, um episódio de mesquinhas disputas partidárias, como alguns aspones mal intencionados querem caracterizar, mas parte de um embate decisivo sobre que modelo de desenvolvimento vamos priorizar como país, qual lugar os recursos humanos e o próprio Estado enquanto agente social e ente econômico vão nele ocupar. Autoritarismo e regressão Pois graças à inflexibilidade, à atitude de confronto e, agora, à tentativa de esvaziar uma forma de protesto prevista na lei incitando fura-greves e procurando inseminar cizânia entre os próprios trabalhadores, assiste-se à irrupção de uma forma de autoritarismo inédita no passado recente do país, patrocinada por um governo que se publiciza como progressista e de centro-esquerda. |
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