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Entrevista: A perplexidade da esquerda

7, agosto, 2013

Em meados do século XIX, Karl Marx já previa a morte do capitalismo, prognóstico que tem sido reiterado desde então por extensa fileira de pensadores de esquerda. Mas, segundo o filósofo alemão Anselm Jappe, dessa vez o desfecho é inevitável. Segundo ele, ao dispensar da cadeia produtiva e consumidora contingente cada dia maior de seres humanos, o capitalismo prepara a própria destruição.

Jappe é vinculado à Crítica do Valor, corrente teórica que estuda o capitalismo a partir do que considera contradições inerentes ao seu funcionamento, pela crítica da mercadoria, do valor, do trabalho abstrato e do “fetiche da mercadoria”, conforme o conceito elaborado por Marx na parte da sua obra que, para Jappe, precisa ser realçada.

Convidado pelo grupo Crítica Radical, Jappe visitou Fortaleza no fim de julho para dar palestras e divulgar seu novo livro, Crédito à Morte, coletânea de ensaios acerca do que ele julga ser o declínio do capitalismo. O filósofo conversou com O POVO sobre o que ele considera fase terminal do sistema, equívocos da esquerda tradicional em compreender esse momento e a relação das manifestações rua no Brasil com esse contexto.

O POVO - É a nona vez que o senhor visita o Brasil, mas desta vez foi num momento diferente. Qual a leitura que o senhor faz desse momento de manifestações, coisas diferentes em termos de organização social - ou desorganização?

Anselm Jappe - Desde há vários anos, temos sucessão de movimentos sociais nos países árabes, anglófonos, como o Occupy (Wall Street), depois os Indignados na Espanha e em outros países europeus. Eu, como outros autores da Crítica do Valor, somos muito mais céticos do que os marxistas tradicionais. Os movimentos frequentemente pareciam de um tipo populista, de crítica essencialmente ao mundo das finanças, aos bancos, e que essencialmente pediam a volta para o estado social dos anos 60, para uma política economia keynesiana. Lutas que não criticam o capitalismo, mas uma forma extrema de capitalismo, o neoliberalismo financeiro. Fiz muitos inimigos por essas críticas aos movimentos sociais como Occupy, por criticar slogans como “Nós somos os 99%”. Em relação aos movimentos na Turquia e no Brasil, me pareceu imediatamente que tiveram caráter diferente. Eram muito mais ofensivos. Aconteceram em países que tiveram grande crescimento econômico, com a formação de uma nova classe média. Me pareceu muito interessante que exatamente essa classe média, que aproveitara esse crescimento, fosse a primeira a se revoltar. Não é somente a crise do capitalismo que puxa as pessoas a revoltar-se. Também quando aparentemente funciona bem, o capitalismo cria sempre um tipo de vida bastante insuportável. E também as reivindicações eram frequentemente contraditórias. Cada um chega com sua reivindicação pessoal. Me parece ser a riqueza desse movimento. Significa que há vontade de protestar mais forte do que os pretextos concretos. Os pretextos eram pequenos: as árvores no parque na Turquia, o preço da passagem do ônibus no Brasil.

OP - O senhor acha então que isso não é uma fraqueza, mas uma das virtudes?
Jappe - É uma riqueza possível. A esquerda tradicional ficou perplexa. Dois grandes intelectuais brasileiros, que são amigos meus, me disseram a mesma palavra: que estavam perplexos. Um movimento sem partido, sem bandeiras, sem desempregados parece um movimento que não sabe o que quer aos olhos da esquerda tradicional. Um pouco como existiu no 68 na França. Os pretextos eram a reforma universitária, o autoritarismo do presidente (Charles) de Gaulle, mas isso não explica por que, de um momento para o outro, 10 milhões de pessoas entraram na greve na França. Momentos quase inexplicáveis, quando a História se desperta.

OP - O senhor disse que é mais cético que a esquerda tradicional em relação ao Occupy, aos Indignados. E vê o Brasil e a Turquia como diferentes disso. Em que medida é diferente do que aconteceu e em que medida deixa o senhor menos cético, ou não, que a esquerda tradicional?

Jappe - Essa manifestação era muito uma atmosfera, um sentimento coletivo, que é difícil de compreender por quem não participa dela. A diferença é que, na Europa, as reivindicações foram claras, mas muito defensivas. Como se uma vida sem juros excessivos, sem tanto poder dos bancos, sem políticos corruptos já pudesse ser uma vida muito melhor. No melhor dos casos, significaria voltar aos anos 60, o que já é difícil. Os movimentos do tipo Occupy e Indignados me pareciam muito voltados para espécie de rancor social. A coisa que mais me chamou a atenção nos protestos brasileiros, e também a dos outros europeus, foi a contestação do espetáculo esportivo. Nós, estrangeiros, estamos tão habituados a identificar o Brasil com o futebol, que os brasileiros são os mais loucos do mundo por futebol. E ver contestação tão forte ao futebol, que nunca houve na Europa e outros países, para mim foi a maior e a mais linda surpresa. Eu participei também de um grupo de sociólogos da França que faz a crítica do esporte, não somente da comercialização do esporte, mas também do espírito de competitividade etc., e essa tendência antiesportiva na Europa é bem pequena. É incrível ver aqui um milhão de pessoas se manifestando contra a Copa das Confederações. Me parece muito mais interessante contestar o espetáculo esportivo do que simplesmente pedir mais escolas públicas ou melhores hospitais. São coisas justificáveis, claro, mas bastante banais.

OP - O senhor fala do potencial que enxerga em toda essa efervescência social. O que fazer com esse potencial?
Jappe - O que aconteceu no Brasil e um pouco na Turquia me parece aquilo que já descobriu o filósofo francês Émile Durkheim no século XIX. Ele fez estudo científico sobre o suicídio e descobriu um fato bastante surpreendente: os suicídios aumentam em períodos de prosperidade econômica. Ele deu a explicação de que, num período de prosperidade econômica, as expectativas das pessoas crescem ainda mais rapidamente que as condições reais da vida. É mais fácil ter um sentido de decepção com a vida em meio a um desenvolvimento forte. Me parece um pouco a mesma coisa do Brasil. Nos últimos dez, 15 anos, a Europa esteve se afundado na crise. Aqui no Brasil notei o inverso: os estudantes têm a ideia de que há um futuro que os espera. Tiveram mais possibilidade de bolsas para estudar na Europa. Eles não têm uma ideia obsessiva de que precisam achar trabalho. Na Europa há um pânico de que depois (da faculdade) não se ache trabalho. Aqui muitos estudantes estão mais ou menos seguros de achar um trabalho, e ficam com tempo para discutir, para fazer política e outras coisas.

OP - O senhor diz que é muito fácil ir para a rua e se dizer vítima dos banqueiros, do mundo das finanças, quando, na verdade, somos parte e alimentamos o sistema. Como é isso?

Jappe - Escrevi num artigo publicado em Portugal que esse slogan de “nós somos os 99%” é a coisa mais idiota que conheço. Porque significa dizer que nós todos, com todos os nossos vícios, que são frutos de nossa socialização capitalista, somos perfeitos, e todo o mal está concentrado num pequeno grupo de banqueiros, de políticos corruptos, que numa conspiração teriam conseguido enganar o povo. É uma lógica do rancor, do ressentimento. No país europeu onde a crise é mais forte, a Grécia, se vê isso. Os gregos se sentem traídos pelas promessas não cumpridas do capitalismo. Depois de consumirem muito, chegou uma conta extremamente elevada. Nesses momentos, surgem movimentos de ressentimento, que buscam grupos sociais que seriam responsáveis pela crise. Como se o problema estivesse na má vontade de um grupo definido de pessoas e não no próprio capitalismo. É o tipo de protesto social que pode facilmente tornar-se fascista.

OP - Ainda a pergunta: quando o senhor diz que todos nós somos parte deste sistema, como isso funciona? De que forma agimos e alimentamos esse sistema, eu, o senhor, o homem na rua?
Jappe - Muitos marxistas tradicionais, quando criticam o capital, criticam somente os capitalistas, como um grupo de pessoas que exploram as outras. Mas os males do capitalismo não estão limitados à exploração e à injustiça social. Há todo um sistema em que todos nós estamos sempre consumindo, sendo obrigados a trabalhar e para trabalhar aceitamos mais ou menos tudo que nos propõem. Nós podemos escolher. Fazemos coisas que sabemos que são nocivas. Sentimo-nos obrigados a comprar um carro, sabendo do mal que ele é para a natureza. Estamos em espírito de competição, fazendo tudo o possível para vencer o outro, para ser mais forte que a concorrência, sobretudo nos negócios, no comércio, mas também na vida, no concurso público. Também achamos que devemos nos aproveitar da fraqueza psicológica dos outros. Na vida pessoal também, estamos numa lógica de competição, de ser mais belos, mais dinâmicos que os outros. Estamos todos mais ou menos acostumados a aceitar um consumo compensatório, comprando coisas de que não precisamos. Se nos sentimos tristes um dia, então compramos um CD, um carro novo, para nos sentirmos melhor. Um dos paradoxos é que somente ganhando um pouco mais de dinheiro podemos permitir-nos escapar um pouco às contingências do sistema. Só passando num concurso ou tendo um comércio bem sucedido podemos nos permitir ir um fim de semana à praia, ir para longe.

OP - Como romper com isso? Uma postura individual - a não ser que a pessoa tenha muito dinheiro... É possível fugir disso?

Jappe - Atualmente existem movimentos que ao menos colocam essa questão, como os movimentos de decrescimento, de consumir o mínimo possível, de comprar sua comida de uma cooperativa de camponeses, de utilizar bicicleta e não carro, de não ter televisão. Tem também lados bem ridículos nisso. Mas já acho bem interessante que as pessoas comecem a se colocar esse tipo de pergunta. Antes os movimentos sociais clássicos somente queriam tomar o poder e mudar a sociedade, mas as pessoas continuavam a trabalhar, a consumir como antes. Nos anos 60, houve também os movimentos de reforma da vida, de as pessoas irem para o campo. Agora se tem movimentos que, numa base coletiva, tentam reduzir nossa dependência individual do consumo, do trabalho, que é ao menos um passo na direção justa.

OP - O senhor disse que nas tentativas de romper com isso há certas posturas ridículas. Por exemplo?
Jappe - O discurso de decrescimento tem um lado bem moralista, quase religioso, de parte de seus expoentes, que põe muito ênfase numa ética individual. Existem muitos burgueses que, depois da feira de rua, pegam os legumes rejeitados e os levam para casa para demonstrar que não se deve desperdiçar toda essa alimentação. Tem pessoas que, quando pegam avião, pagam voluntariamente uma taxa para compensar o carbono. Outro perigo desses movimentos de pobreza voluntária é que podem participar numa administração da pobreza. É claro que a riqueza capitalista nunca mais voltará. Agora, o verdadeiro problema para os administradores do sistema é como impedir os pobres, cada vez mais numerosos, de se revoltarem. Isso também poderia fazer parte de uma estratégia do sistema. O decrescimento e todos esses tipos de economia alternativa poderiam ser isso: uma alternativa do tipo “ser pobre significa ser mais feliz”. Evidentemente existe um tipo de frugalidade que também é positivo, de que se pode viver bem com poucos bens de consumo. Mas é diferente da pobreza no sentido capitalista.

OP - Partidos de esquerda ainda trabalham com a ideia de que o ápice da exploração é o operário, quando hoje existem estratos sociais que nem conseguem emprego. Essa concepção da esquerda tradicional deixa de dar conta dessa complexidade? Porque os operários, explorados que sejam, de certa forma estão em situação de privilégio em relação a pessoas que estão excluídas do próprio mercado de trabalho.

Jappe - Sim. Se não estou errado, no Brasil, os trabalhadores, no sentido clássico da palavra, os trabalhadores de fábrica, nunca foram a classe mais pobre da população. É quase uma classe média no Brasil. Os marxistas tradicionais, que não querem abandonar a centralidade do trabalho, sempre buscam novos tipos de trabalhadores, porque, para os marxistas tradicionais, o trabalhador é sempre o sujeito revolucionário. E depois eles descobriram os trabalhadores precários, os trabalhadores da informática, os do espetáculo e da publicidade, e fica sempre central a ideia de que essas pessoas são exploradas. Na verdade, o problema verdadeiro, que a esquerda não quer bem compreender, é que o sistema capitalista utiliza cada vez mais tecnologias que têm menos necessidade do trabalho vivo. Essa é a causa mais profunda da crise do sistema capitalista. Há cada vez mais pessoas que não trabalham porque não há mais necessidade de seu trabalho para o sistema capitalista. O verdadeiro problema não é mais somente a exploração, mas, sobretudo, o ser supérfluo. Nós, da Crítica do Valor, insistimos muitíssimo sobre isso. A lógica capitalista finalmente não sabe mais o que fazer com os homens e com as mulheres. Porque uma parte ainda serve para ser explorada, mas tem muitas pessoas que não servem nem sequer para ser exploradas. As tecnologias precisam de poucas pessoas especializadas, ainda precisam de um pouco de pessoas para trabalhar no campo, mas a maioria da população é inútil do ponto vista do capitalismo. É uma realidade que a esquerda realmente não compreende.

OP - Podemos considerar que a questão não é apenas política ou econômica? Me parece sobretudo uma questão espiritual, da relação do homem com os seus semelhantes e com o mundo...
Jappe - Não, não, não é isso. Digo sempre que é uma questão de civilização, no sentido material, claramente, mas também intelectual e moral. “Espiritual” é uma palavra de que não gosto muito. É claro que não podemos só dizer que toda a culpa é somente dos outros, dos capitalistas, dos banqueiros, dos políticos. Ao mesmo tempo, nossas possibilidades são muito limitadas. O que precisa verdadeiramente é uma mudança de civilização, ao mesmo tempo individual, em pequenos grupos, e coletivamente.

OP - Quando o senhor diz que as pessoas começam a se dar conta disso, até que ponto há nessa perspectiva uma superação do marxismo? E como o seu grupo chegou a essa construção acadêmica nessa perspectiva?

Jappe - Como explicou muito bem Robert Kurz, existe um duplo Marx. Marx. Em parte de sua obra, fez a crítica das categorias fundamentais do capitalismo: da mercadoria, do valor, do dinheiro e do trabalho abstrato. É uma crítica difícil de compreender, e, na sua época, parecia muito uma antecipação do futuro. Ele investiga o verdadeiro núcleo da lógica capitalista. Essa lógica abstrata teve historicamente várias formas concretas, sobretudo a luta de classes, entre proletariado e capitalistas. O marxismo tradicional – e também o próprio Marx, não é preciso santificá-lo - esqueceu a lógica categorial do valor, do trabalho abstrato, e concentrou a atenção na luta de classes. Também porque Marx já estava convencido de que o capitalismo estava acabando. E teve vida muito mais longa do que ele imaginava, mas não eterna. Marxistas tradicionais ficaram absolutamente fixados numa ideia: o conflito entre proletariado industrial e capitalistas.

OP - O senhor acha que esse Marx está superado?
Jappe - Hoje o conflito entre proletários industriais e capitalistas não é mais o conflito central na sociedade, porque a importância da indústria diminuiu muito. A luta de classe perdeu rapidamente seu valor revolucionário e passou a ser essencialmente sindical, por mais justiça social. Ao mesmo tempo essa pacificação social fortaleceu o capitalismo e não pôs as bases para a sua superação. Grande parte das camadas populares preferiu arranjar-se por meio do capitalismo e aceitar um melhor salário. A novidade é que o capitalismo começou a cavar as próprias bases. Finalmente, o capitalismo fez mais contra ele mesmo do que todos os movimentos revolucionários. Ele hoje existe essencialmente graças ao crédito e à finança. É o capitalismo que está abolindo o trabalho, abolindo o dinheiro. Porque grande parte do dinheiro circulando hoje é dinheiro sem valor, como diz Kurz, um dinheiro que não é o produto de um trabalho realizado, que é criado do nada.

OP - Ao longo da história houve várias crises do capitalismo. E agora? O senhor acredita que ele vai se destruir, cair de podre?

Jappe - O argumento de que já houve várias crises é sempre usado por economistas burgueses e por economistas de esquerda para os quais o capitalismo é eterno, porque tem acessos de febre e depois recomeça. Não é assim, porque o problema principal, a substituição do trabalho vivo pela tecnologia, é uma realidade que não se pode mais abolir. O capitalismo ocupou toda a superfície do planeta e toda a sociedade. Não se tem mais quase nada que se possa transformar em mercadoria. O capitalismo não é uma parte da sociedade: é o todo.