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ENTREVISTA: O que significa ser de esquerda hoje na Europa?

11, novembro, 2013

Um dos resultados mais surpreendentes do estouro financeiro de 2008 e da crise econômica global que se seguiu a ele é que, na Europa, a esquerda não conseguiu capitalizar a imensa fratura social que se produziu. Apesar da aparição de movimentos como os Indignados na Espanha ou o Cinco Estrelas na Itália, e com a exceção do Syriza na Grécia, não ocorreu na Europa um avanço concreto da esquerda como alternativa de governo. Nas urnas predominou o voto castigo para quem estava no poder: mais da metade dos governos da União Europeia (UE) mudaram de sinal político. Além do desgaste do exercício do poder, esta resposta do eleitorado tem a ver com o fato de que a diferença entre direita e esquerda se reduziu, em muitos casos, a um neoliberalismo puro ou a um neoliberalismo com “face humana”. Jornalista do site Carta Maior conversou sobre esse tema com Paolo Gerbaudo, pesquisador do Kings College, especialista nos novos movimentos sociais de autor de “Twits and the street”, para analisar o que significa hoje ser de esquerda na Europa. Confira:

A esquerda não soube ou não pode aproveitar a atual crise para mudar a narrativa hegemônica neoliberal dominante desde a queda do Muro de Berlim. Há um problema de definição ideológica? O que significa, afinal, ser de esquerda hoje na Europa?

Temos dois tipos de esquerda que não guardam nenhuma relação entre si. Por um lado a esquerda movimentista com alguns partidos muito pequenos como o Refundazione na Itália e Die Linke na Alemanha. Por outro lado, há uma esquerda socialdemocrata convertida ao evangelho neoliberal que tem um discurso a favor das privatizações e do abandono da regulação da economia. Entre essa realpolitik socialdemocrata e uma esquerda radical de caráter doutrinário, não há nada.

Mas antes da queda do muro também havia uma divisão entre duas esquerdas, os socialdemocratas e os comunistas. A diferença é que, naquele momento, estas divisões tinham uma forte definição programática e ideológica. Com a queda do muro, parece que essas definições desapareceram.

Há uma confusão ideológica muito forte. Depois da crise de 2007-2008, se esperava um novo espaço para a esquerda para responder ao neoliberalismo, mas isso nunca se concretizou em um programa. Houve reações, a mais notável delas com o Syriza na Grécia, que conseguiu construir uma resposta radical capaz de legitimar-se em nível popular com uma política não só de questionamento da economia e das multinacionais, mas também do Estado e da estrutura política predominantes no atual marco neoliberal. Mas em geral houve uma incapacidade da esquerda de responder à nova estrutura de classes das sociedades pós-industriais europeias. Na Europa, cerca de 80% dos trabalhos estão no setor se serviços, muitos dos quais são de classe média. Pode-se dizer que a classe operária é hoje de aproximadamente 15%, mas as formas de organização da esquerda ainda refletem o sistema produtivo industrial.

Isso é do lado da própria esquerda. Mas em nível de sociedade parece haver uma mudança de época. Nos anos 60, 70 e mesmo nos 80 se discutia em termos ideológicos. Com a crise dos grandes relatos, este eixo perdeu muito peso. A sociedade mesma já não parece ter interesse nessas buscas programáticas alternativas.

Claramente há uma crise do espaço público e da definição do que é político. O mito sobre a política que as gerações dos 60 e 70 tinham perdeu muita força. Agora o político está muitas vezes na conexão com a experiência pessoal, com a identidade social construída antes da política. Por exemplo, a maneira que o sistema afeta a via dos trabalhadores precarizados, a insegurança ou a preocupação frente a um Estado que controla a vida das pessoas como estamos vendo agora no caso Snowden, algo que expõe também a crise de legitimidade do Estado. Estamos em um momento de transição entre o que havia antes da crise e o posterior.

Do ponto de vista ideológico, a queda dos grandes relatos deixou todo o cenário a um relato, o neoliberal. O estouro da bolha de 2008 foi um ponto da crise desse relato, mas na falta de alternativas ele segue funcionando por inércia ou default.

Vemos isso muito na Europa. Aqui na Inglaterra se impulsionam medidas como a privatização dos Correios rechaçada pela população, mas que é levada adiante porque tem uma aparência de racionalidade. E é certo que há certa inércia em como se segue levando adiante mais do mesmo. Mas é interessante que mesmo em um país tão à direita como o Reino Unido, vemos o regresso de um discurso socialista ao espaço público e à política eleitoral. O líder do trabalhismo, Ed Miliband, propôs um congelamento das tarifas das empresas energéticas. É uma proposta populista que não muda as regras do jogo, mas é sintoma da mudança de debate público. De fato, as pesquisas dizem que a maioria dos ingleses está a favor da nacionalização dos serviços.

O caso Miliband parece sintomático. Ele precisa mudar primeiro o eixo do debate público. E está conseguindo. Agora se fala da “crise do nível de vida” e não da racionalidade de uma medida. Isso parece preceder a apresentação de alternativas programáticas.

Ainda que se permaneça no marco neoliberal, ou seja, que as empresas sigam em mãos privadas, essa mudança tem sua validade. Mas a lógica é similar aquela adotada por Obama na área da saúde. A lei da saúde nos Estados Unidos é um monstro que torna obrigatória a inscrição no sistema privado ao invés de fazer uma saúde pública. Ou seja, fica na metade do caminho. O desafio é ir mais além e propor estruturas econômicas e direitos fundamentais para controlar a atividade social. Syriza, na Grécia, é o único partido que está avançando neste caminho entre o idealismo e o pragmatismo. Além disso, não se vê nada.

A Itália é um desastre. O Partido Democrático, que é uma convergência entre os ex-comunistas e a esquerda católica, tem um discurso anticorrupção, antielitista, mas basicamente mantem um critério neoliberal promovendo uma eficiência maior do Estado e mais transparência. Na França, Hollande foi muito demagógico porque, além do imposto para os ricos, não propôs nenhuma mudança, não há um programa socialista. É como dizer que, com um pouco de redistribuição de renda, solucionamos todos os problemas. E não é assim, Sem política econômica e industrial, sem criar postos de trabalho, não se pode avançar.

Como se pode fazer isso na Europa? Porque falamos de países que podem pensar que não estão tão mal assim uma vez que estão entre os ricos do mundo.

Essa mudança precisa acontecer simultaneamente em nível nacional e europeu. Com Hollande e a alta de impostos para os ricos, ocorreu que os ricos foram para outro país, de modo que sim uma coordenação política com outros países é muito difícil. Há coisas que estão ocorrendo neste nível de coordenação como a Taxa Tobin para as transações financeiras. Há muito mais o que fazer também na luta contra os paraísos fiscais ou em termos do imposto corporativo. Neste sentido, os movimentos sociais têm feito muito para mudar o debate público. No Reino Unido, Tax Uncut, que luta contra a evasão fiscal das corporações, foi uma maneira de estabelecer regras básicas da vida pública. Os indignados e outros movimentos têm feito o mesmo. A questão é como passar do diagnóstico para a ação. Precisamos de uma política socialista das redes em uma sociedade europeia pós-industrial.

Tudo isso está gerando uma nova maneira de definir programaticamente a esquerda?

Trata-se de propor uma defesa dos bens comuns como os serviços públicos, o transporte, o direito à cidade e à moradia. Precisamos de um socialismo que possa responder a uma necessidade de segurança em uma sociedade insegura, garantindo uma renda básica universal. Mas como dizia o historiador Eric Hobsbawm, estamos falando de uma economia mista. Não queremos retornar a um estado todo poderoso, clientelista, corrupto, ineficiente. O setor público tem que estar controlado pela participação cidadã para que seja transparente. Isso é algo que começa a ser proposta em distintos lugares, seja em nível acadêmico ou em movimentos, como pelo 5 Estrelas da Itália com sua reivindicação da renda mínima, ou Partido X da Espanha que defende a participação pública como forma de controle.

Há algum sinal de que a sociedade europeia esteja acompanhando estas ideias? Em muitos casos ela parece ter se movido mais para a direita, culpando os imigrantes, por exemplo.

Há um risco muito claro para a democracia. Basta ver o que ocorre na Grécia com o movimento fascista Aurora Dourada. O problema é que não tem havido um consenso programático na esquerda que não construiu pontes com os movimentos sociais. Isso é o que precisa ser feito.