AFRFB publicam artigo - O ajuste fiscal brasileiro: no caminho da recessão e do aprofundamento da injustiça fiscal
5, fevereiro, 2015Por Marcelo Lettieri e Paulo Gil Introíni
A entrega do comando da economia brasileira aos representantes da banca financeira representa enorme retrocesso. Surpreende que ocorra justamente no momento em que o Brasil deveria avançar no debate sobre as formas de renovar o ciclo de redistribuição de renda vivido nos últimos doze anos e do imprescindível passo adiante: a repartição mais justa da riqueza.
O “consenso” sobre a necessidade de um ajuste fiscal de caráter recessivo foi fabricado pela associação do mercado financeiro com o oligopólio da grande mídia familiar. Esperava-se correção de rumos, mas em outra direção. Para as forças políticas progressistas que impulsionaram a reeleição da Presidente Dilma Rousseff, o recuo político de alto risco ainda é incompreensível, pois significa a aplicação do programa econômico derrotado nas últimas quatro eleições.
A primeira medida anunciada pela equipe econômica – a quem não podemos chamar de nova – foi o corte de despesas governamentais , prenúncio da postura fiscal ortodoxa que seria adotada, com sinal trocado à que deveria ser praticada em momentos de crise. Além da redução de despesas administrativas, duas Medidas Provisórias retiram direitos arduamente conquistados pelos trabalhadores, impondo condições restritivas para o recebimento de diversos benefícios sociais.
Seguiu-se o anúncio de alterações tributárias, entre as quais se destacam a duplicação das alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) incidentes nas operações de crédito para as pessoas físicas, o reestabelecimento da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre combustíveis (CIDE), que afetarão os preços da gasolina e óleo diesel, além do aumento das alíquotas das contribuições sociais (PIS e COFINS) sobre as importações. Foi vetada a correção da tabela de incidência do Imposto de Renda das Pessoas Físicas, o que, diante da inflação, significa um aumento real do tributo e diminuição da renda disponível líquida.
Noutra frente, mas condizente com o viés ortodoxo da “nova” política econômica, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central decidiu elevar em 0,5 pontos percentuais a taxa básica de juros, que chegou a 12,25% ao ano. É a maior taxa desde junho de 2011.
No discurso oficial, a combinação das políticas fiscal e monetária restritivas é necessária para recuperar a confiança dos investidores na economia brasileira e melhorar a competitividade do País. Ora, em não raras ocasiões, percebemos que, por trás do dito, está o não dito. Apesar de não explicitado, o conjunto da obra aponta para o objetivo deliberado de reduzir o consumo, pelo encarecimento do crédito e dos próprios preços.
À declaração de que devemos recuperar a confiança dos investidores, leia-se: a dívida pública deve ser uma efetiva garantia da riqueza privada. Ao arrolar seus motivos, os adeptos da ortodoxia não se lembram do efeito da alta taxa de juros sobre o estoque da dívida pública, nem da necessidade de aumento de tributos para dar conta de gastos financeiros crescentes ou, ainda, da pressão sobre as contas externas por conta de um câmbio sobrevalorizado. Não custa perguntar: por que a China não abre mão do controle cambial e de capitais? E, afinal, de que investimento está falando o Ministro da Fazenda? Taxas de juros estratosféricas servem para atrair fluxos especulativos, mas desestimulam investimentos produtivos.
Quanto à busca de maior competitividade, nem nas entrelinhas foi dito que a principal variável de ajuste é o mercado de trabalho, pela redução dos níveis de emprego e renda. Mas é o que se pretende. As Centrais sindicais já preveem uma desaceleração do ritmo de formalização do emprego e o crescimento da informalidade.
Diante do pacote de medidas, é inevitável lembrar o mestre Kalecki, que listou os motivos de ordem política para a resistência dos “líderes industriais” às políticas de pleno emprego. No que se refere à tributação, o pacote apresentado pelo governo revela uma clara opção de extrair ainda mais recursos da população de baixa e média rendas, via tributos sobre consumo, enfatizando a chamada “tributação dos inocentes”. Trata-se, também, de uma opção absolutamente cômoda, os tributos escolhidos são mais fáceis de arrecadar, pois são todos incidentes na fonte e em bases automatizadas.
Tem respaldo na realidade, o apelido emprestado ao sistema tributário brasileiro: Robin Hood às avessas. Com o aumento (previsível) da dívida pública, em virtude da alta dos juros, o resultado será a transferência de recursos tributários extraídos dos mais pobres aos detentores dos títulos financeiros.
Muito se tem falado e discutido que o sistema tributário brasileiro não pode mais continuar sendo usado como instrumento de geração e manutenção da desigualdade, porque concentra renda e riqueza. E mais, é disfuncional ao investimento produtivo e ao próprio desenvolvimento, na medida em que não tributa os lucros e dividendos distribuídos aos sócios e acionistas e os fluxos financeiros estrangeiros de natureza especulativa.
A tributação sobre o consumo precisa ser urgentemente reduzida, e isso não significa que se deva reduzir a carga tributária bruta, como defendem aqueles que menos pagam e que não são usuários dos serviços públicos. A tributação exagerada sobre o consumo ofende os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da solidariedade, pois onera mais os que ganham menos.
No Brasil, a tributação indireta que incide sobre o consumo já representa mais de 50% do total da arrecadação, enquanto a tributação sobre a renda gira em torno de 21%, exatamente o oposto do que se observa nos países mais desenvolvidos, e este tem sido um entrave relevante para a redução das desigualdades. Nossa condição de um dos países mais desiguais do planeta já deveria ser suficiente para impedir iniciativas que possam aprofundar a desigualdade, especialmente considerando que o Artigo 3º da Constituição Federal estabelece que a redução das desigualdades sociais e regionais é um dos objetivos fundamentais da República.
O pacote do governo faz lembrar aqueles dos tempos do neoliberalismo, quando o Brasil e praticamente toda a América Latina viviam ajustes fiscais permanentes, seguindo as recomendações do FMI, baseadas no Consenso de Washington.
Será que, em outros tempos, não foi sequer cogitada, pela equipe econômica, a alternativa de tributar a renda do capital ou o grande patrimônio?
Entre as várias alternativas à disposição da sociedade brasileira, o Instituto Justiça Fiscal apresentou três fontes de recursos que contribuiriam para o aumento da arrecadação e a diminuição das desigualdades sociais e regionais:
1. A revogação da isenção sobre a distribuição de lucros, o que já seria suficiente para cobrir com folga o resultado do pacote tributário ora proposto e representaria um estímulo ao reinvestimento produtivo.
2. A instituição do imposto sobre grandes fortunas, embora com alíquotas mínimas, que produziria uma arrecadação estimada maior do que as medidas adotadas pelo governo e retiraria os recursos de quem efetivamente possui capacidade contributiva.
3. O resgate da tributação sobre a exportação de minérios, com a preocupação de valorizar a cadeia produtiva nacional e reduzir os danos ambientais.
Ainda que algumas medidas sejam de difícil implementação – pois exigem debates políticos e diálogo com a sociedade, enfrentamento do interesse do poder econômico e enfrentamento do interesse dos principais financiadores de campanhas políticas – representam uma oportunidade de um novo pacto social por uma sociedade justa e menos desigual.