Entrevista: Auditor-Fiscal Leandro Ferrari fala sobre o Carf e os impactos da Operação Zelotes
2, junho, 2015Em entrevista, o Auditor-Fiscal Leandro Ferrari (DS/Caxias do Sul) fala sobre o Carf e os impactos da operação zelotes. Confira abaixo.
Quais são os contribuintes que estão representados no CARF? Como é feita a escolha dos conselheiros?
Leandro Ferrari: Muitas das representações são indiretas, através de escritórios de advocacia. As indicações privadas partiam basicamente das três confederações nacionais patronais: CNI (indústria), CNC (comércio) e CNA (agricultura). Mas sabe-se, por exemplo, que a vice-presidente do CARF é uma advogada do Bradesco. Até recentemente, a CNC contaria com 72 conselheiros no CARF, sendo 11 na Câmara Superior.
A escolha dos conselheiros é feita pelo Comitê de Seleção de Conselheiros (CSC), conforme previsto pela Portaria MF nº 256, de 22 de junho de 2009, e regulado pela Portaria MF nº 438, de 27 de agosto de 2009. É vinculado à Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda, sendo composto por um representante do CARF, indicado por seu Presidente, que preside o Comitê, por um representante da Secretaria da Receita Federal do Brasil, indicado pelo Secretário da Receita Federal do Brasil, por um representante da Procuradoria da Fazenda Nacional, indicado pelo Procurador-Geral da Fazenda Nacional, por um representante das confederações representativas das categorias econômicas de nível nacional, e por um representante da sociedade civil, designado pelo Ministro de Estado da Fazenda.
Segundo a Portaria MF nº 438, os candidatos são submetidos a uma avaliação que compreende análise do currículo e entrevista para aferir os conhecimentos específicos inerentes à função e a disponibilidade do indicado para o exercício do mandato.
A Receita Federal tem nas Delegacias de Julgamento instâncias administrativas para julgar os recursos dos contribuintes. Existe necessidade de uma segunda instância de julgamento de recursos na esfera administrativa?
Leandro Ferrari: Não existe esse posicionamento segundo o Supremo Tribunal Federal. Do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 26212/DF, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Julgamento em 03/05/2011, temos que:
"Além disso, esta Corte possui entendimento sedimentado no sentido de que não existe na Constituição Federal de 1988 a garantia ao duplo grau de jurisdição na esfera administrativa. Nesse sentido: RE 210.246/GO, Red. p/ acórdão Ministro Nelson Jobim; RE 384.144/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes; AI 382.221-AgR/RJ, Rel. Min. Moreira Alves."
O Brasil adota o sistema uno de jurisdição,em que os recursos administrativos não guardam relação com a atividade jurisdicional, de modo que as decisões administrativas não gozam de caráter de definitividade, podendo sempre ser revistas pelo Poder Judiciário. Isto é, o entendimento do Supremo Tribunal Federal na direção que não há inconstitucionalidade nas decisões em que não haja previsão de recurso para um órgão de segunda instância, citem-se inclusive as palavras do Ministro Marco Aurélio:
"Diante do disposto no inciso III do artigo 102 da Carta Política da República, no que revela cabível o extraordinário contra decisão de última ou única instância, o duplo grau de jurisdição, no âmbito da recorribilidade ordinária, não consubstancia garantia constitucional."
(Agravos Regimentais em Agravo de Instrumento nº 209.954-1 e 210.048-0, Rel. Min. Marco Aurélio, 2ª Turma, DJ 04.12.98, p. 15)
A composição do CARF, com paridade por representantes da Fazenda e membros indicados por contribuintes pode abrir espaço para conflito de interesses e esquemas como os revelados na Operação Zelotes?
Leandro Ferrari: De algumas daquelas ações populares propostas em 2013, vemos que havia advogados atuando em defesa de empresas e ao mesmo tempo atuando nos julgamentos do CARF. Inclusive, muitos escritórios de advocacia divulgam que atuam perante o CARF e ao mesmo tempo divulgam que seus próprios advogados são conselheiros do CARF. Se eu sou um contribuinte submetido a uma autuação da Receita Federal iria preferir escolher um escritório com um advogado que atua dentro do CARF ou alguém que não pertence ao quadro do CARF?
Interessante saber que é vedado o exercício da advocacia por parte dos servidores da Receita Federal, por ser uma atividade incompatível, pois há a possibilidade de colocar o interesse particular acima do interesse público, ou afetar a impessoalidade e moralidade que devem reger todo ato de agente público. Mas quanto ao contrário, ser advogado e atuar dentro de um órgão de julgamento administrativo, somente agora se percebeu a incompatibilidade. Inclusive é preciso ter em mente que isso pode ocorrer de forma indireta, por exemplo, alguém pode advogar não para uma pessoa jurídica diretamente, mas para outras do mesmo ramo de negócio, sujeitas às mesmas autuações fiscais, e então atuar ajudando a criar jurisprudência que acabarão posteriormente favorecendo aquela para o qual advoga.
Se verificarmos o que dispõe a Lei contra atos de improbidade administrativa, Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, veremos que há grande possibilidade de esses conselheiros serem enquadrados no artigo 9º, mas o conflito de interesses fica mais claro quando lemos o Estatuto da OAB, Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, que em seu artigo 28, inciso II, estabelece que a advocacia é incompatível com as atividades de julgamento em órgãos de deliberação coletiva da administração pública direta e indireta. Isto é, já existem leis trazendo claramente a incompatibilidade, tanto é verdade que há o Projeto de Lei nº 6.752, de 2013, em tramitação na Câmara dos Deputados que procura legalizar o que está em desacordo com o estatuto. O PL 6.752 propõe introduzir o seguinte parágrafo ao artigo 28:
"§3º Não se incluem nas hipóteses do inciso II, os membros dos conselhos ou tribunais administrativos que não recebam remuneração de natureza salarial para o exercício da função de conselheiro ou julgador destes órgãos colegiados.”
Observe-se que na justificação desse Projeto de Lei, como fundamento jurídico, foram usadas decisões do Conselho da OAB que restringe o alcance da lei, isto é, decisões de nível administrativo para confrontar o disposto em uma lei e assim poder propor alterações, ou seja, estamos subvertendo os papéis originários dos poderes da república. Não é assim que corrigiremos as distorções na estrutura estatal.
Qual sua opinião sobre as propostas de mudança no regimento do CARF, como o estabelecimento de remuneração para os conselheiros e escolha por concurso público?
Leandro Ferrari: Sabemos que os conselheiros representantes dos contribuintes não são remunerados, mas, ora, o fato é que todo trabalho deve ser remunerado. Se não há como afirmar categoricamente que há relação direta entre corrupção e remuneração, ao menos devemos nos perguntar que motivos levariam alguém com notório saber e prestígio dedicar parte do seu tempo e esforço pessoal para uma causa pública sem que seja remunerado por isso. O Executivo Federal inclusive propôs o Projeto de Lei nº 5081, de 2009, para remunerar os conselheiros titulares representantes dos contribuintes com o valor do teto da remuneração do Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil.
No entanto, devemos primeiro analisar o CARF sobre o disposto na Constituição Federal de 1988. A inclusão legal de representantes dos contribuintes veio com o Decreto nº 16.580, de 1924 e a paridade com o Decreto nº 5.157, de 1927, que vigoravam sob a Constituição de 1891, na qual sequer constava a palavra "concurso". Essa estrutura atravessou décadas, as constituições passadas, e chegou até a nossa atual Constituição sem uma análise mais criteriosa.
A atividade de fiscalização e arrecadação de tributos é monopólio estatal, portanto, é uma atividade que deve ser prestada pelo Estado com exclusividade. O CARF, sendo uma segunda instância administrativa que julga os lançamentos tributários e confere efetividade às atividades de fiscalização e arrecadação, é parte do Estado, e o Estado manifesta sua vontade através de seus agentes, ou seja, as pessoas físicas que pertencem a seus quadros. Esta atividade deve ser prestada pelo Estado com exclusividade, com agentes estatais.
Não há que se confundir aqui a função administrativa com a função jurisdicional do Estado. Ninguém pode ser parte e juiz ao mesmo tempo, nem mesmo a Administração Pública, haja vista o princípio da separação dos poderes, do contrário seria aceitar a possibilidade de ser juiz em causa própria. Logo, dizer coisa julgada administrativa significa apenas que a decisão se tornou irretratável pela própria Administração e é aí que está um dos equívocos: o artigo 5º da Constituição Federal trata de direito e garantias fundamentais dos indivíduos, de forma a limitar a atuação estatal, e esse é o sentido de previsão do inciso XXXVI quanto à Fazenda Pública, de que a lei não excluirá os sujeitos passivos da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Se há radicalismo, exagero ou abuso ou por parte da administração pública, assiste ao contribuinte de todo o direito de recorrer ao Poder Judiciário. Controlar a legalidade do ato administrativo praticado por uma autoridade processualmente subordinada não deve levar à confusão de considerar a autoridade fiscal como juiz e parte ao mesmo tempo. É preciso aceitar que a função estatal administrativa é parcial, a administração pública defenderá a administração pública, mas trata-se nada mais do que atos públicos vinculados, de acordo com um ordenamento jurídico estabelecido por processo legislativo democrático.
Um dos pilares da administração pública é que os atos públicos obedecerão aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Para respeitar a impessoalidade, os atos do ente estatal devem ser destinados à coletividade geral, sem considerações, sem privilegiamento, e não devem estar sujeitos a características pessoais daqueles a quem se dirija. O Estado em si deve agir de modo impessoal, logo, é um pressuposto que a administração pública em todos os níveis, as instâncias julgadoras e todos os demais órgãos e entes estatais devem agir de modo impessoal. Nesse sentido, a própria e fiscalização e arrecadação da Receita Federal já é impessoal. A autoridade fiscal não tem qualquer faculdade ou direito subjetivo de agir, nem tem qualquer interesse próprio ou particular com o exercício de sua função legal. Logo, o divulgado percentual de 95,8%, correspondente à quantidade total de autuações mantidas dentre aquelas efetuadas em 2010 e julgadas até 31/12/2014, espelha na verdade que tanto os trabalhos seleções estão sendo bem realizados, bem como as autuações decorrentes.
Se a legislação tributária é confusa, complexa ou contraditória, se há discordância e insatisfação quanto à tributação, que seja alterada, de forma clara e inequívoca, mas pelo Poder Legislativo, Poder este competente para dispor sobre as bases legais de modo a evitar já no nascedouro possíveis litigâncias advindas de interpretações diversas de mesmos dispositivos legais.
Alegar falta de democracia dentro da administração pública e por isso argumentar pela estrutura paritária atual do CARF é inverter o raciocínio, é distorcer a função do Poder Executivo, da administração pública. Aliás, ao se ignorar as competências primárias do Poder Legislativo é que ajuda a perpetuar uma legislação tributária confusa, complexa e contraditória. Tivessem as fazendas públicas permanecido firmes na letra da lei, o resultado já teria sido, sem dúvida alguma, a sua revisão legislativa.
É atentando aos fundamentos jurídicos básicos e aos fundamentos do Estado que deixaremos um melhor sistema jurídico às gerações futuras, e não ajudando a manter um sistema que gera uma miríade de teses e situações específicas que mais deixam a legislação tributária opaca do que transparente.
Portanto, ainda que a estrutura paritária do CARF tenha sido considerada correta e útil por décadas, não encontra respaldo no atual ordenamento jurídico, e deveria ser declarada inconstitucional a composição por agentes outros que não concursados.
A Operação Zelotes da Polícia Federal descobriu casos de compra de votos, de pareceres, de decisões do CARF. Em sua avaliação, quais podem ser os desdobramentos desta operação?
Leandro Ferrari: Os desdobramentos são vários. Primeiro porque jogou-se luz no processo administrativo tributário, algo importantíssimo para o Estado, mas pouco conhecido não só da população em geral, mas também dos jornalistas, basta ver a confusão que fizeram entre CARF e Receita Federal. A estrutura do CARF já está sendo discutida, mas creio que o próprio processo administrativo tributário começará a ser discutido com mais profundidade.
Mas além disso, vimos que houve muita surpresa quanto à dimensão dos valores em julgamento, que, pelo que foi divulgado em relação à Zelotes, trata-se de grandes contribuintes. Então jogou um pouco de luz também no tal do sigilo fiscal e nas informações tributárias em geral disponibilizadas ao público. Muitas informações tributárias poderiam ser divulgadas sem necessariamente quebrar o sigilo fiscal. A falta de divulgação de informações desse tipo beneficia a quem? No final, a sensação que fica é que realmente somente os pequenos e assalariados pagam. Há muito espaço para mudanças no sistema tributário brasileiro. O problema é como essas mudanças virão, serão melhorias no sentido de reduzir as desigualdades sociais ou aumentá-las? Baseado na representação atual do Congresso Nacional podemos imaginar o virá pela frente.