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Entrevista: " Desigualdade e pobreza. Um casamento consequente."

5, agosto, 2014

“Modelos de crescimento que concentram renda não geram desenvolvimento”, enfatiza o professor doutor Flávio Comim em entrevista. Para ele, os indicadores de renda são sempre imperfeitos do ponto de vista do desenvolvimento. “Governos que se financiam por uma carga tributária regressiva (baseada em impostos indiretos) cobram mais proporcionalmente de quem ganha menos. Se, além disso, eles gastam mais com quem é mais rico, como parece ser um padrão mundial, em que melhores escolas e hospitais não estão onde os mais pobres vivem, então crescimento também não é sinônimo de desenvolvimento por essa via”, explica.

Um dos temas mais delicados deste debate gira em torno da pobreza. “Precisaríamos discutir o mínimo, se consideramos importante um conceito de pobreza absoluta (relacionado à insegurança alimentar) ou pobreza relativa (exclusão social) ou as características de tipos distintos de pobreza, como a rural e a urbana, ou a dos idosos ou das crianças. Ao invés, embarcamos em um programa de pobreza no nosso país em que a renda pela renda é o principal parâmetro, sem nenhuma base conceitual ou empírica que possa justificar a escolha da linha de pobreza utilizada”, sustenta. Ao relacionar a infância e a questão de gênero, o pesquisador aponta que as políticas educacionais deveriam ter um foco no longo prazo.

“A desigualdade tem um impacto psicológico muito grande para os excluídos. De um lado, ela reafirma um sistema de poder e de privilégios de uma classe dominante. De outro, ela excluiu injustamente muitos daqueles que nada tiveram a ver com a configuração do que está aí”, complementa.

Confira a entrevista:

Por que crescimento econômico não é sinônimo de desenvolvimento?

Por várias razões. A mais óbvia é que depende de como o crescimento é distribuído. Via de regra, nos países mais desiguais do mundo, os 10% mais ricos se apropriam de metade da renda gerada anualmente. Modelos de crescimento que concentram renda não geram desenvolvimento.

Também é verdade que a renda é um indicador imperfeito de desenvolvimento, pois depende de como os governos traduzem impostos em benefícios para suas populações. Governos que se financiam por uma carga tributária regressiva (baseada em impostos indiretos) cobram mais proporcionalmente de quem ganha menos.

Se, além disso, eles gastam mais com quem é mais rico, como parece ser um padrão mundial, em que melhores escolas e hospitais não estão onde os mais pobres vivem, então crescimento também não é sinônimo de desenvolvimento por essa via. Também cabe mencionar que o crescimento pode se dar em regiões e setores diferentes. Por último, a razão principal para crescimento não ser sinônimo de desenvolvimento é que a renda é apenas um meio para atingir os fins de uma boa vida, e como tal ela é condição necessária, mas não suficiente.

Por que a pobreza não se reduz à renda? Que outros fatores estão em jogo?

A nossa sociedade tem evitado uma discussão séria sobre o significado da pobreza. Isso é paradoxal, dada a ênfase na pobreza enquanto uma aparente ênfase na política pública nacional. Como tal, deve refletir o que se considera uma vida que não é decente segundo alguns princípios civilizatórios considerados básicos em nossa sociedade. O espaço mais importante deveria ser o espaço dos fins.

Precisaríamos discutir o mínimo, se consideramos importante um conceito de pobreza absoluta (relacionado à insegurança alimentar) ou pobreza relativa (exclusão social) ou as características de tipos distintos de pobreza, como a rural e a urbana, ou a dos idosos ou das crianças. Ao invés, embarcamos em um programa de pobreza no nosso país em que a renda pela renda é o principal parâmetro, sem nenhuma base conceitual ou empírica que possa justificar a escolha da linha de pobreza utilizada.

De que forma as políticas públicas de transferência de renda, ainda que relevantes, são insuficientes no sentido de garantir maior igualdade? Que desafios estruturais estão postos para além da questão econômica?

Elas são insuficientes em três sentidos básicos. Primeiro, as políticas de transferência condicionada de renda são políticas de estímulo à demanda por bens públicos (como educação e saúde) para que se possa quebrar no longo prazo o ciclo intergeneracional de transmissão de pobreza. Como tal, elas nada falam sobre o acesso ou a qualidade da oferta. No entanto, não se pode tomar a oferta como dada, pois dela depende o êxito do programa. Os pais podem estar desejosos de enviar seus filhos ou filhas à escola, mas se não houver escola ou se essa escola for de péssima qualidade, eles podem não ter como dar uma educação adequada aos seus filhos.

Segundo, para que a pobreza seja reduzida no longo prazo é importante que as crianças tenham não somente um bom preparo, mas que, quando esteja na época de ingressar no mercado de trabalho, elas tenham boas oportunidades de emprego ou de continuarem estudando. Infelizmente, muitos programas de transferência condicionada de renda não atingem sustentabilidade, pois não têm um bom programa de estímulo ao trabalho dos jovens.

Por último, essas políticas devem trabalhar a base motivacional de seus beneficiários para que não vejam a transferência como um ‘intitulamento’, mas sim como um apoio para seu desenvolvimento, caso contrário há o fantasma da dependência e da manutenção da pobreza entre os pobres sem conseguir modificar nenhum parâmetro estrutural.

Em que medida as políticas públicas não se resumem às ações do Estado? Qual é o nosso papel dentro deste contexto?

Estamos acostumados a um conceito anacrônico de política pública que coloca todas as responsabilidades da ação pública no Estado. O que acontece, frequentemente, é que as políticas e leis não são obedecidas pela população e o Estado insiste dentro do mesmo modelo de cima para baixo promovendo ações para os cidadãos. Ao invés disso, o Estado precisa trabalhar mais o meio da ação com os cidadãos, informando e convencendo em vez de impondo; facilitando e empoderando em vez de executando diretamente; discutindo e aperfeiçoando seus planos em vez de implementando sua visão parcial. Há muito que evoluir nessa área. Cabe ao Estado promover a cidadania. Nosso papel é demandar um novo Estado e estar preparados para novos modos de engajamento e atuação.

De que maneira a desigualdade de gêneros, desde a infância, gera ao longo do tempo desigualdades sociais no âmbito da educação, da saúde, da violência, etc.?

A infância é um período decisivo para o desenvolvimento. Recentemente coordenei o Relatório de 2014 de Desenvolvimento Humano para a ONU do Panamá sobre o tema da infância e juventude. Vimos nessa pesquisa que as capacidades comunicativas das crianças são consolidadas desde os três anos de idade, que sua inteligência cognitiva começa a estabilizar aos 10 anos e que sua inteligência emocional se desenvolve até os 21 anos. Ou seja, existem janelas de desenvolvimento cognitivo e psicoemocional das crianças que devem ser aproveitadas. Caso contrário, criamos desigualdades que depois não conseguimos arrumar através de políticas públicas posteriores.

Vivemos em um país que não valoriza a infância, que não a protege e que não investe para estimulá-la o máximo possível. Nossa política educacional é sempre de curto prazo, o que é um grande erro. Não existem programas na televisão aberta que crianças na primeira infância podem assistir sem serem bombardeadas por um comercialismo deturpador de caráter e por valores superficiais. Você entra em uma livraria para comprar um livro infantil e o vendedor ou vendedora lhe pergunta: “livro de menino ou de menina”? Como? Não há livro somente ‘de criança’? Desde muito cedo as crianças são forçadas a incluir o gênero como um aspecto marcante de suas identidades. Aqui está a raiz dos problemas que encontramos depois. Isso é reproduzido depois nas escolas, na mídia, nos espaços públicos. Para muitos pais a tarefa de educar seus filhos respeitando e valorizando os demais é uma tarefa inglória.

De que maneira maior igualdade de educação, saúde e renda significa maior liberdade para as pessoas?

De certo modo, a educação, a saúde e até mesmo a renda representam tipos diferentes de liberdades, instrumentais e constitutivas, para as pessoas. O problema que surge é que a vida começa muito desigual no nosso mundo. Enquanto alguns têm de tudo, outros sofrem inúmeras privações que comprometem até mesmo suas capacitações mais básicas de raciocínio e de afeto (de sentirem-se amados e de amar). A desigualdade tem um impacto psicológico muito grande para os excluídos. De um lado, ela reafirma um sistema de poder e de privilégios de uma classe dominante. De outro, ela excluiu injustamente muitos daqueles que nada tiveram a ver com a configuração do que está aí. Vivemos em uma sociedade comandada por comportamentos de consumo que exclui milhões de pessoas daqueles padrões que promove.

Como Amartya Sen nos ajuda e pensar os complexos desafios impostos ao ser humano no século XXI no sentido de buscarmos uma sociedade menos desigual?

No seu livro A Ideia de Justiça, o professor Amartya Sen fundamenta a luta por um modelo de sociedade que combate injustiças, contrapondo-se ao filósofo John Rawls, que, segundo Sen, defende um modelo de justiça transcendental (baseada em uma noção idealizada de justiça). Desse modo, ele justifica uma cidadania que combate pontualmente desigualdades à medida que elas se impõem e motivam os indivíduos a lutarem contra elas.

O fato é que o século XXI começou com uma crise econômica de sérias proporções para o mundo desenvolvido que afeta também os países em desenvolvimento. O contexto é de concentração não apenas de renda, mas de riqueza, como nos mostra Thomas Piketty em seu livro O Capital no século XXI. Essa próxima década será repleta de discussões sobre desigualdades e injustiças impostas por modelos excludentes de crescimento. Prevê-se também muita tensão social, a menos que haja controles sobre o capital financeiro e uma atuação mais equitativa do Estado.

Como podemos compreender que bancos sejam 'salvos' de quebrar enquanto a desigualdade na distribuição de renda seja tão avassaladora em todo o mundo?

Vivemos em uma sociedade onde o 1% mais rico faz prevalecer suas vontades e poder sem que os demais 99% tenham sequer consciência disso. As leis e políticas públicas se dão de acordo com as necessidades do capital. O desenvolvimento humano conquista progressos significativos, mas não consegue alterar as estruturas produtivas que geram a concentração de renda e riqueza que vemos. As políticas de austeridade europeias e norte-americanas salvaram primeiro os bancos para a manutenção do status quo e do poder político-econômico dessas sociedades. Os ajustes, em forma de recortes em gastos sociais, foram feitos em cima de populações com pouco poder político, como os idosos, famílias com muitas crianças, pessoas recebendo benefícios, etc.

Mas pior que a desigualdade de renda é a de riqueza. E sobre essa sabemos pouco. A população sabe muito pouco. E tudo concorre para que continue sabendo pouco, enquanto seus interesses são capturados por um modelo consumista e superficial que a mantém ocupada pensando na sua próxima compra enquanto um mundo poderoso que elas desconhecem manda na ordem do dia.

Vários filósofos como Michael Sandel ou Martha Nussbaum já teorizaram sobre as políticas de austeridade. Muitos economistas já se pronunciaram contra. Mas o que segue é a vitória dessa ‘classe própria’, como definiu Dani Rodrik, esse 1% mais rico que comanda não somente a riqueza, mas também as estruturas econômicas e políticas nas sociedades em que vivemos. Para sair dessa ‘armadilha da riqueza’, há que se investir em educação & tecnologia para que novas oportunidades econômicas e um novo poder político-social seja criado para este novo século.

*Flávio Vasconcellos Comim possui graduação em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestrado em Economia pela Universidade de São Paulo – USP e pela Universidade de Cambridge e doutorado em Economia pela Universidade de Cambridge, onde também realizou o pós-doutorado. Atualmente, é professor de Economia da UFRGS e professor visitante da Universidade de Cambridge.