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A paulada na especulação e a guerra das expectativas

29, agosto, 2013

O governo resolveu dar uma paulada na especulação com a taxa de câmbio no país.

A informação veiculada em Brasília nesta 5ª feira, que fez o dólar recuar depois de atingir a cotação recorde de R$ 2,45, é de que o tacape oficial pode desferir golpes sucessivos, num total entre US$ 50 bi a US$ 100 bi para esse fim.

É o custo para se atingir dois objetivos indissociáveis.

Oferecer um seguro de travessia a quem depende de dólar, até o novo ponto de equilíbrio da taxa cambial.

E desmontar a roleta viciosa dos mercados futuros. Mesmo sem extingui-los.

Algo como montar um supermercado ao lado de uma mercearia.

A exemplo das 'correntes', ou bolhas, os mercados futuros se erguem pelos próprios cabelos.

Às vezes, 'puxando' a cotação em operações simuladas de compra e venda dentro da mesma empresa.

Artifícios especulativos. Mas que fazem um estrago real no resto da economia.

Por exemplo, magnificando uma defasagem real do câmbio, de mais de década.

Ela corroeu a própria base industrial do país, com importações baratas de insumos e manufaturas que deixaram de ser produzidos aqui.

E subtraiu competitividade à manufatura brasileira no exterior, com a contrapartida da queda no investimento local em inovação e capacidade produtiva.

O resultado do conjunto é o déficit crescente nas contas externas; em julho ele atingiu um recorde de US$ 9 bi (leia a coluna detalhada de Paulo Kliass sobre esse assunto; nesta pág).

A oferta de dólares, através de leilões diários --com compromisso de recompra pelo governo-- pretende sufocar a manipulação e permitir uma reacomodação industrializante do câmbio.

A travessia pode custar algum prejuízo em termos de inflação.

Saldo que terá que ser avaliado com quem tem mais a perder: o poder de compra dos assalariados.

A negociação é o preço de uma passagem de ciclo coordenada, com retifica de motores no meio do caminho.

Não agir, ou agir em conta-gotas, como vinha acontecendo, pode significar o pior.

A rendição; a entrega do comando do país à voragem especulativa.

No limite, reservas seriam devoradas e a inflação também acusaria o golpe.

Tudo de forma predatória, com possível fuga de capitais, sem oferecer lastro à reestruturação industrial.

A livre mobilidade dos capitais favorece esses ajustes de solavanco, liderados pela revoada do dinheiro volátil.

Ele dispensa às nações o mesmo respeito que tem a nuvem de gafanhoto pelo trigal.

Uma alternativa aos gafanhotos e ao uso das reservas seria centralizar o câmbio no Banco Central.

E fixar o seu valor.

O Estado teria o monopólio sobre a entrada e a saída de moeda forte; capitais voadores seriam barrados em quarentenas longas, para ingresso e saída.

O Brasil dispõe de instrumento legal para fazê-lo.

A lei que trata da matéria, a 4131 continua em vigor.

Instituída em 1962, a 4131 sobreviveu à ditadura militar protegida pelo verniz nacionalista de alguns segmentos do Exército.

No ciclo tucano, foi sabotada, sem o desgaste da revogação. O mesmo ocorreu quando o ministro da Fazenda de Lula era Antonio Pallocci.

Basicamente, a 4131 dá ao Estado brasileiro poderes cambiais equivalentes aos exercidos hoje pelo governo chinês, que explicam uma parte do êxito exportador da nova fábrica do mundo.

Em vez da livre mobilidade de capitais – que tucanos, como o ideólogo de Marina Silva, André Lara Resende, querem transformar em livre conversibilidade, o que implica renunciar à moeda própria - a 4131 prevê o monopólio do Estado sobre o câmbio.

O Brasil, portanto, tem amparo legal para controlar saídas e ingressos de capitais de risco, bem como empréstimos e financiamentos, ademais das remessas na forma de licenças de patentes e marcas, contratos de assistência técnica, outros serviços e transferências de patrimônio etc.

Desprovida das forças que lhe deram sustentação no passado --e do poder de Estado que ordena a sua equivalente na China-- a 4131 figura como uma reserva política à procura de um ator.

O governo preferiu utilizar a reserva em dólares.

E com ela afogar o núcleo duro da especulação, que maximiza a incerteza em toda economia.

Mesmo sem exercer a centralização cambial, a ação estatal demonstra a sua pertinência.

O mercado futuro de câmbio, em tese, deveria proteger exportadores e importadores, permitindo-lhes fixar uma taxa preventiva, contra surpresas na hora de efetivar compras ou vendas.

A exemplo dos fundos hedge, porém, e das bolsas de commodities, o que deveria ser um fator de estabilidade foi incorporado ao circuito da valorização do capital fictício.

A especulação cambial, no entanto, é só a face mais explícita de uma guerra muito maior em marcha na economia brasileira nesse momento.

A guerra pelo controle das expectativas.

A transição de ciclo da economia mundial, puxada pela recuperação norte-americana, acelerou o timing dessa disputa.

A cogitada redução da liquidez pelo Fed, já precificada no esticão das taxas de juros de longo prazo nos EUA, vai redirecionar os fluxos de capitais para longe das economias em desenvolvimento.

O cavalo de pau inverte a roda da arbitragem de juros, deixa o dólar mais escasso, as importações mais caras e a inflação mais elevada.

Com um agravante no caso brasileiro.

A volatilidade natural de uma travessia desse tipo está sendo exacerbada por uma determinação política de ordem mais geral: a sucessão presidencial de 2014.

Estamos falando de um ajuste de ciclo planetário ao qual se sobrepõe uma tentativa conservadora de retornar ao poder.

Não é uma miudeza.

Instaura-se o vale tudo na associação entre a fome e a vontade de comer.

A manipulação das expectativas num quadro como esse pode abrir um rombo fatal no casco da economia e do governo.

Tão ou mais grave do que a defasagem cambial, que distorce a formação dos preços e a orientação dos mercados.

A formação das expectativas no capitalismo não é algo que se possa ancorar exclusivamente no manejo das taxas de juros e de câmbio.

Ao contrário do que alardeiam os porta-vozes dos mercados perfeitos, as informações na selva capitalista não estão todas disponíveis.

A incerteza é a única certeza efetiva num universo em que a expectativa de cada um se move a partir da expectativa do outro. E, não raro, contra ela.

Ou pior: contra o que se supõe que seja a expectativa do outro.

O ‘outro’ diz respeito frequentemente a mercados inteiros.

A mídia e o interesse especulativo manipulam essas referências nesse momento, acenando com a iminência de um descontrole econômico decorrente da transição cambial em curso.

A meta desse mutirão é soltar todos os demônios da incerteza ao mesmo tempo.

O da inflação, decorrente do impacto dos insumos importados na cadeias de preços; o da parada súbita de ingresso de capitais; o da imposição de um choque de juros para atrair dólares; o do desaquecimento daí decorrente e a sua consequência social explosiva: o desemprego.

A guerra opera no sentido de adiar o investimento de que o país necessita.

E demonizar a insuficiência do investimento feito.

Numa transição de ciclo econômico, como agora, o comportamento errático dos mercados, perde a capacidade de ordenar a formação das expectativas dos investidores.

A mídia que opera com a constância ensurdecedora de uma britadeira, exacerba seu papel e dá sentido estratégico ao conjunto.

Fica claro, que a formação das expectativas não é uma matemática.

Envolve decisões humanas, interesses em conflito e, como se vê no caso brasileiro, luta pelo poder.

A paulada do governo na especulação é necessária.

Mas não será suficiente, se os interesses que querem derrota-lo continuarem a exercer um poder descomunal na guerra das expectativas.

Graças ao monopólio da mídia.